O descanso do guerreiro - Manuel Ferreira

O descanso do guerreiro
Manuel Ferreira
(06.09.1933 - 24.12.2017)
 
Da última vez que estivemos juntos, há poucos meses, vi o corpo gasto de alguém que conheci no apogeu da sua juventude, exibindo um porte atlético, cheio de pujança e equilíbrio anímico.
O seu aspecto macilento, pele enrugada e músculos mirrados, reflectia agora a imagem triste de uma ruína humana, transfigurada pela erosão do tempo e pela doença silenciosa que o consumia. E fiquei consternado, a prever o pior.
 
Não sei porque simpatia anímica fomos amigos mais de 40 anos. Recordo, nas incontáveis viagens que fizemos juntos, em turismo, trabalho, feiras e congressos, aquele caudal comunicativo que derramava à sua volta. Por vezes, implacável como as forças da natureza, fulminava como um raio e destroçava como um vendaval, mas acabava por revelar sempre a sua graça e conquistar a maior popularidade e simpatia.
Em todos estes anos fiquei a dever-lhe provas de amizade e estima, que me obrigam a deixar-lhe, aqui, palavras de muito reconhecimento.
Durante todo esse tempo, em que convivi e privei com ele, achei-o sempre um amigo prestante e generoso.
Falei-lhe uns dias antes a desejar-lhe um Bom Natal. Senti-o mais preocupado com a saúde da mulher do que da sua própria.
Tolhido pelas leis da vida, sem o fogo interior de outrora, pressentindo, talvez, aproximar-se o fim, as suas palavras tinham um tom angustiado.
- Vejo que estás muito pessimista, disse-lhe.
- Estou. Infelizmente. Já não me reconheço nem me conformo com esta fatalidade a pesar em cima de mim.
Tentei dar-lhe algum alento e esperança, numa conversa que se transformou num monólogo penoso entre ambos.
 
O seu fim fez aumentar em mim o sentimento de perda de um grande amigo e de um grande vulto da história da nossa indústria gráfica.
Muito mais do que o exemplo de liderança na sua actividade empresarial - na qual começou a destacar-se pela coragem e competência demonstrada, quando, na década de 50, assumiu o comando da gráfica fundada pelo pai, então em situação económica difícil, foi o responsável pela sua recuperação e grande expansão nos anos seguintes, elevando-a a um patamar de excelência – ele representava a figura de alguém sempre preocupado em investir em tecnologias que fizessem a diferença, visionando as inúmeras possibilidades da sua utilização; uma pessoa que conseguia não apenas ter boas ideias de negócio, mas acima de tudo realizá-las.  
Sem dúvida, o prestigio alcançado pela Soctip, no seu consulado, resultou da tenacidade, da firmeza e da convicção de um lutador persistente, que nunca desanimou nem desistiu diante das adversidades.
Em 1995, por cansaço, ou em harmonia com a sua vontade, decidiu passar integralmente a direcção da empresa aos descendentes representando a terceira geração. Treze anos depois, com o adensar da vulnerabilidade da economia, a pôr em perigo a sua sobrevivência, decidiram vendê-la.
 
No funeral não consegui dominar a emoção na despedida da sua viagem até à eternidade. Nem o incómodo de tantas ausências… Talvez em razão dos dias prolongados de férias de Natal, ou da forma menos eficaz de comunicação.
Nunca julguei que fosse possível que depois de uma vida profissional e associativa tão intensamente vivida, ficasse tão rapidamente apagado da memória colectiva.
A sua acção, quer como empresário, quer como protagonista na luta travada para fundar uma nova legitimidade associativa aquando da transição do anterior regime político para o actual, muito contribuiu e teve influência preponderante no projecto que abriu caminho a uma nova era na vida da actual Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel (APIGRAF). Alguém com tantas virtudes e merecimentos, conjugando em si o talento e a dignidade, competência e prestígio, na partida para a paz do sono eterno, não teve a despedida que merecia.  É triste, mas as coisas são como são.
Ele fazia parte do cada vez mais exíguo rol dos meus amigos de peito. E foram já muitos aqueles que cingidos a uma esperança de perpetuidade, foram envelhecendo sem dar por isso, e desaparecendo do meu convívio.
 
Manuel Ferreira foi um homem de rijo carácter. De estilo desabusado, ao mesmo tempo contido e mordaz, irónico e cordial, rústico e urbano, moderado e excessivo, humilde e altivo, sempre deu voz a um coração perto da boca, ainda que correndo o risco de ser mal compreendido.
Para além da característica do seu feitio – todos temos as nossas balizas humanas - o que recordo, aqui, especialmente, é a sua amizade sempre fiel, generosa e dedicada.
Nesta minha curta homenagem ao Amigo, que pelo seu exemplo edificante e fecundo marcou na indústria gráfica uma geração, patenteio todo o meu reconhecimento, bendizendo a sua memória, que me deixa uma pungente saudade.
 

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