A infausta notícia deixou-me envolvido numa grande mágoa: “- Morreu o Padre Valentim, vítima de um AVC! Não resistiu ao stress causado pelo seu afastamento e pelo fim da sua gráfica, e morreu com ela!”
Dias antes, pelo telefone, tinha-o animado a voltar em Agosto às Termas de Chaves, na esperança de, mais uma vez, o ter por companhia. Bem tentei anestesiá-lo com palavras, a convencê-lo voltar à estância termal que frequentara por mais de 40 anos, a maior parte deles condenado à companhia do seu amigo indefectível, Miguel Torga, e ao seu mau feitio…, mas de nada valera. Que sim…, talvez…, mas que já nada lhe dava qualquer alívio. E, amargamente: “ - Sabe, o vazio que sinto cá dentro é da alma, que está negra de angústia e de saturação. Crucificaram-me de tal maneira, que estou condenado a sofrer tormentos, espiando uma culpa para preservar a dignidade oficial dos dignitários.”
Correcto, activo, inteligente, afável, revelando sempre o seu espírito de uma maneira simples e risonha, conquistou grande simpatia e popularidade no sector gráfico, que tinha por ele uma enorme consideração e respeito.
Ex-dirigente da Associação das Indústrias Gráficas, instituição que, desde o seu início, teve a paixão de servir durante longos e afanosos anos, integrou o grupo de dirigentes da Associação vitimas de um dia, uma noite e outro dia de sequestro no Ministério do Trabalho, sem dormir e sem comer, quando, no pós 25 de Abril de 1974, os sindicalistas pretendiam impor a assinatura de um contrato de trabalho leónico.
Em incontáveis momentos da minha vida profissional e pessoal, tive oportunidade de conviver com o Reverendo Padre Valentim Marques, desde quando, ainda muito jovem, veio a suceder ao saudoso Padre Assis, na Gráfica de Coimbra. Recordo-o, cheio de paciência e boa vontade, aturando as caturrices do velho até à sua jubilação. Depois, muito embora não ainda totalmente autónomo do seu pelouro, pouco a pouco começar a esvaziar gavetas e estantes, a escavar e renovar sem descanso o caruncho acumulado e a abrir caminhos novos para horizontes mais largos.
A missão que lhe atribuíram partira da breve experiência vivida com o velho Padre, que agora deambulava penosamente como um rio sem água, que deixara de correr.
Metido na pele de responsável, a jovem estrela ascendente revelava-se particularmente dotada para o cargo, onde encontrava a mais satisfatória expressão, e nunca mais se desviara dele.
Do que foi a sua acção e o papel desempenhado por ele ao serviço da Gráfica de Coimbra, fala mais alto e com mais propriedade que qualquer documento evocativo, a obra que desenvolveu, bem expressa na transferência das instalações antigas para as novas em Assafarge, com tecnologias mais avançadas (Gráfica I), e a ampliação desta com novo edifício e máquinas de grande porte (Gráfica II).
Este percurso da Gráfica de Coimbra, que ao longo de décadas todos nós fomos presenciando, parecia ter a garantia da perpetuação, porém, nos tempos mais próximos, foi rolando nas dificuldades que o turbilhão da crise provocara, e que atirou centenas de empresas para a insolvência.
Sabemos que a forma de valer na doença a alguém, quando, indefeso, luta para sobreviver, é medicá-la e não antecipar deliberadamente a sua morte. Tapar os ouvidos às súplicas e virar as costas ao doente, é uma atitude irreparável na crueza do vaticínio: deixar morrer quem morre… Sem nenhum sinal de apreço a quem luta para preservar a vida, mais parecem caprichar vê-la com a sorte agravada.
Na última conversa ao telefone, dizia-me: “- Vivo no pavor de ser réu diante da comunidade que servi a vida inteira.”
Sensível aos disfarces dos que o olhavam de soslaio e se demarcavam da sua fraqueza, ou se mostravam falsamente complacentes, de coração apertado desabafou: “- Cada noite, tudo o que trago encubado em mim torna angustiosas as minhas horas de insónias e pesadelos. Fim trágico este meu, a agravar-se cada dia, que parece uma praga de Deus.”
Acredito que morreu no desespero de nada poder fazer e na convicção de que, afinal, todo o seu esforço de uma vida à causa da igreja fôra inútil.
“- Mas”, dizia-me, “a vida é assim. De bem-vindo a indesejado tardei cinco décadas.” E, num ímpeto de confissão: ”- Até à minha saída, nunca deixei de cumprir religiosamente com os trabalhadores da empresa, e o mais atempadamente possível com os fornecedores. E com os bancos também. Estávamos com dificuldades financeiras, é verdade, mas até já havíamos planeado como capitalizar a empresa, porém, o espírito que pairava na instituição não era esse. Queria dizer fim… A partir daí, todas as desilusões se sucederam por demónio do escrúpulo ou da fraqueza de certos personagens.”
- Como razão de tudo isso, tem a ver a sua relação pessoal com o chefe de topo da hierarquia?, perguntei.
-“ É óbvio que não morremos de amor um pelo outro, e que em face disso, eu fiquei sem pé, resignado a quem manda.” E prosseguindo: -“ Há pessoas que não gostam de tropeçar em nenhum obstáculo, como se todos os caminhos tivessem que ser a direito. Numa obstinação irredutível, esquivam-se a ser solidários nas dificuldades. Preferem alhear-se delas.” E com mágoa: -“ Escancarar um património valioso, a enfartar ao desbarato e a retalho leiloeiro e compradores, evidencia que alguém abriu mão da fé, sem esperança de ressurreição. Oxalá os remorsos não lhe façam a vida um inferno.”
Morrer em dignidade acaba por ser a aspiração suprema de cada um de nós. O respeito e a veneração profunda pelo ancião sacerdote poderia, e deveria, ter tido uma atitude exemplar da instituição, dando-lhe esse direito até aos seus últimos dias, mas ao que parece, não estivera à altura do gesto.
A missa de corpo presente, por agenda do Bispo, marcada para tão incómoda hora (14h00), afastara a presença de muitas amizades, que desejariam estar no funeral, a despedir-se do Sacerdote, do Homem, do Amigo.
Paz à sua alma.
P.S.: Neste In Memoriam, não é de todo meu propósito ser juiz em causa alheia. Limitei-me a expressar, não exactamente pelas mesmas palavras desassombradas do seu discurso, que me pareceram mostrar a alma inteira sem disfarces, mas com uma oratória que lhes desse fielmente o mesmo sentido, a mágoa, a angústia, a frustração, o desespero, a impotência, o ressentimento, a dor que não lhe parava de sofrer num desespero abandonado.
Embora compenetrado na ideia de que cumpri a minha obrigação com um amigo fiel, é o crítico que há em mim a dizer-me que “ Quem está de fora racha lenha…”, e que “Só quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro…”. Por isso, que seja a própria consciência dos visados a julgá-los.
Copyright © Grafopel 2015 - Designed by Fullscreen.